segunda-feira, 2 de julho de 2012

Um gigante que tomba

Soube hoje, pelo papai: o Romualdo ascendera para os Sagrados Campos de Manitu. Quando foram levar-lhe o café da manhã, ele já estava morto. O Romualdo era daquele tipo de pessoas que a gente pensa que vai estar sempre por aí, com a mesma aparência jovial e a mesma disposição. Para mim, ele era como uma daquelas árvores rijas, imponentes, centenárias, que nunca se vergam e parecem ser eternas. Fiquei surpreso quando, anos atrás, ele começou a manifestar os primeiros sinais de senilidade e decrepitude. Era estranho vê-lo vagar pelas ruas daquele jeito: esquálido, trôpego, balbuciante, desmemoriado. Guardarei contudo,para sempre, a sua imagem mais cativante: sorridente, majestosa, vivaz. Eu o honro e o respeito por isso. Fica em paz, meu irmão.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Meu tipo inesquecível

Eu sabia que o tio Getúlio estava muito doente, no estágio final de sua provação, mas eu não estava preparado para vê-lo prostrado no leito, daquele jeito, consumido, gasto. Oh, Senhor, tem misericórdia de nós! Quando cheguei para visitá-lo e dei com o seu corpo martirizado, estremeci, mas fiz força para não chorar. Não que eu quisesse sufocar a minha compaixão. Não. O que eu queria, na verdade, era deixar transparecer apenas o respeito que sentia em vê-lo travar um combate justo. Quando nossos olhos se encontraram, parecia que os seus estavam a me dizer, pesarosos: "Olha como eu estou, meu filho!" Então, lembrei-me dele, saltitante e sorridente, pelas ruas da Boa Vista. Não me peça desculpas por tê-lo visto torturado, tio; eu é que lhe peço perdão: embora você tivesse me parecido tão frágil e indefeso, tão carente de cuidados, mesmo assim eu não me desdobrei em lhe oferecer suficiente conforto; eu nem ao menos tentei colocá-lo no colo! Embora eu o tivesse abraçado, beijado e dito que o amava, ainda assim eu não passei pelo menos uma noite em claro em sua companhia. Apesar da minha omissão, ainda pude murmurar ao seu ouvido o quanto eu me orgulhava da sua coragem em escolher partir com dignidade, em casa, rodeado dos seus. Mas o que realmente eu admirava em você não era o destemor, e sim a sua grande capacidade de amar. A todo instante você dizia a todos que os amava, e esta é uma entrega que não é fácil de se fazer, porque manifestar o amor é sempre doloroso. Ainda busco compreender porque é tão doído demonstrar o amor. Mas você, indiferente à inevitabilidade da dor, ousou lançar-se à conquista do bem supremo: tornar-se um ser amoroso em toda a sua plenitude. E o conseguiu. Hoje, agora, sempre, você é amor. Ainda não aprendi a sua lição, tio, de querer só o amor. Mas é isto o que eu quero, com toda a minha alma. Obrigado por sua atenção amorosa que nunca me faltou, e receba a bênção do meu amor.

sábado, 16 de janeiro de 2010

O Precursor

Não conhecemos realmente os desígnios do Senhor. Para os nossos padrões humanos, o Honório ascendeu repentinamente. Num dia estávamos aqui, conversando, traçando planos e estratégias para pegar Deus à unha, e no outro ele já estava do lado de lá da vida. Mais uma lição para, sem tardança, vivermos plenamente AGORA. Ambos estávamos devorando as obras de Joel Sol Goldsmith, maravilhados com a simplicidade do seu ensinamento. Dele, atualmente, eu estava lendo "A união consciente com Deus", e eu via como o Honório estava ansioso para mergulhar nesse livro. Eu me alegro em saber que o meu nobre amigo está bebendo agora mais próximo da Fonte que o atraía. Alegro-me em saber que ele subiu mais leve, pois se reconciliara a tempo com as coisas da Terra. Alegro-me em saber que, antes de partir, a sua alma já estava marcada indelevelmente com o ferro da busca incessante por Deus. A paz esteja contigo, Honório Leão de Intenção Pura. Segue em frente, e sê sempre uma bênção.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Me respeite!

Fui almoçar no Karin. Boa comida, mas preços um tanto salgados. E lá estava o andarilho, imperial, só de bermudas, e à espera, como é do seu estilo. Me sentei e sondei o ambiente. Havia umas três mesas ocupadas, e era evidente que os ilustres comensais empenhavam-se em ignorar olimpicamente o maltrapilho que, às suas vistas, fétido, sujo, com a barba e os cabelos à la Rasputin, teimava em espicaçar as suas consciências. A minha comida chegou e as pessoas foram se retirando aos poucos. Ficamos apenas eu e ele. Separei no meu prato um pouco de arroz e frango. Então ouvi a sua voz. Incrível! Eu o julvava incapaz de falar. Ele pedia comida às aterrorizadas serventes que haviam se encastelado na cozinha. Terminei de comer. Juntei vários lenços de papel e montei um tosco prato, no qual coloquei a porção que separara. Levantei-me e fui entregar-lhe. Rapaz! Ele olhou para os restos na minha mão e disse não. O olhar insolente e a postura altiva me diziam tudo: "Tenho dignidade. Se quer servir-me, faça-o com decência". Saí de fininho. E eu, que já pensava em erigir uma estátua para mim mesmo, só porque resolvera esmolar as migalhas que o meu estômago empanturrado refugara... O gesto, que eu presunçosamente imaginara carregado de nobreza, revelara-se hipócrita, e merecidamente acabei levando o famoso tapa sem mão. Bem-feito!

Não deu

Abri a loja e me preparei psicologicamente para mais um dia de próspera atividade. Chegou o primeiro freguês e o cumprimentei efusivamente: -bom dia! Ele me pegou no contra-pé: -bom dia! Dá pra abrir um sorriso nessa cara? Fiquei tão surpreso que nem de leve consegui contrair os lábios. São os árabes ou os chineses que dizem que quem não consegue sorrir não deve abrir uma loja?

sábado, 1 de agosto de 2009

Nós, os manés

Cheguei em casa e fiquei sabendo que há mais de uma hora não havia energia elétrica. Imediatamente liguei para o Centro de Aporrinhação ao Cliente da concessionária-opressora a fim de informar o ocorrido, embora ache o cúmulo do absurdo ser obrigado a ligar para uma central em Fortaleza - ou Cingapura, sei lá - quando essa mesma empresa possui uma loja de atendimento em minha cidade. Qual o quê! Como fazem questão de repetir à exaustão, minha ligação era tão importante para eles que fiquei longos 29 minutos e 30 segundos pendurado ao celular, ouvindo aquela musiqueta enfadonha e aquele lero-lero de que eles eram o sal da terra e um grupo empresarial mais sólido que as pirâmides do Egito, embora fossem incapazes de atender minimamente um simples consumidor-sofredor. O desleixo foi tanto que resolvi retaliar: acessei o site da ANEEL para fazer uma denúncia em regra. Depois de muito zanzar por lá, soube que, antes, deveria contatar a operadora-inoperante. Ok. Mas, depois de esperar uma eternidade que o site abrisse por completo, desisti de postar uma reclamação na Ouvidoria. Tem que ter muito saco, e reconheço não ser bem aquinhoado nesse quesito. Apesar de tudo, nem sob tortura revelarei que que o nome desta prestadora-imprestável chama-se Rede Celpa.

sábado, 27 de junho de 2009

O aguilhão

Há um andarilho que circula por aqui. Ele veste apenas uma surrada bermuda, e é totalmente indiferente ao asseio corporal: há muito tempo a barba, o cabelo e as unhas não sabem o que é um corte. Por não tomar banho, o seu odor é insuportável. Ele é um mutismo só: não emite nenhum murmúrio, nem expressa um gesto sequer. A técnica que usa para comer é infalível: ele se posta em frente a quem dispõe de algum alimento e fica ali, impassível, à espera. Para ver-se livre da presença incômoda, imediatamente lhe dão alguma coisa, e então ele vai embora. E é sobre isto que eu quero falar: sobre esta nossa propensão a querer rejeitar estes irmãos em provação. É um incômodo que queremos evitar. Não procuramos ajudá-los. Pelo contrário, queremos vê-los pelas costas. E... ele está aqui, agora. O fedor é nauseante. O Anselmo pede que ele se vá. Entrego-lhe duas laranjas e ele se afasta. Seu corpo é sujo. Este deve ser o nosso erro: vemos apenas a aparência. Não percebemos o Cristo nele. Se somos omissos quanto a este homem pacato, como conseguiremos fazer o bem àquele que nos faz mal? Ou, então, supremo desafio, amar a um inimigo? Sei que a comparação é covarde e absurda, mas Francisco de Assis, para sobrepor-se ao nojo que um leproso lhe causava, beijou-lhe as pústulas. Nós, simplesmente não nos importamos.