quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Nenhum homem é uma ilha...

Há muitos anos o sr. Benedito Coelho de Oliveira sofria os tormentos de uma enfermidade cruel que o condenara tanto a ser tratado com desdém, menosprezo e asco - deduzidas as raras exceções – como também a testemunhar, ainda em vida, a decomposição do próprio corpo, e a vê-lo corroído e infestado por vermes. A úlcera aberta no peito, tão devastadora que fazia desviar o olhar mais obstinado, permitia entrever o pulsar do coração. Eu pretendia visitá-lo, mas nunca fui além da promessa. Acho que, inconscientemente, temia ver o que iria encontrar. Foi somente após saber que a alma do sr. Benedito libertara-se do grilhão da carne que eu privei-me da minha indiferença e fui até onde os seus restos descansavam, pois eu lhe devia uma visita. Então, à frente do seu túmulo despojado de qualquer aparato ou inscrição, pedi-lhe perdão por haver permitido que a minha vergonhosa repugnância, mascarada de reticente sensibilidade, me houvesse impedido de partilhar da grandeza da sua miséria. Em seguida, numa singela reverência, curvei-me perante o espírito deste valente que, sobrepondo-se aos estigmas do desprezo, do preconceito e da dor, soubera elevar-se à excelsa presença da majestade do Cristo.

Uma razão para viver

Há dez anos de cama, padecendo de uma distrofia muscular progressiva, Inmaculada Echevarría, uma enfermeira espanhola de 51 anos, pediu e obteve, com o apoio da Associação Direito de Morrer Dignamente, autorização judicial para que o respirador mecânico que a mantinha viva fosse desligado. Ela faleceu na noite de 14 de março de 2007, em Granada. É cômodo e bonito falar em perseverança e constância quando não estamos confrontados com a dor, o imobilismo e a carência, e é somente o acatamento a esta verdade que me permite louvá-la por sua firmeza de ter ido até onde, provavelmente, muitos de nós não conseguiríamos chegar. Além do mais, a trilha dos seus sofridos anos percorridos é a prova mais cabal a oferecer de que não se pode dizer que ela não tenha feito o que pôde, que não tenha tentado, e que nenhum de nós é insuspeito de dizer que poderia ter feito mais, e melhor. Tudo bem. Mas, que falta não faz, nessas horas, uma Associação Direito de Viver Dignamente, para nos ajudar a manter-nos vinculados à Fonte perene de Amor, Sabedoria e Poder, nela confiar e saber esperar...

Ir e regressar

Um canadense de 25 anos que se dizia enojado com a sociedade, e que apregoava o assassinato e a barbárie, foi morto em confronto com a polícia após disparar contra os alunos de uma escola em Montreal, matando uma pessoa e ferindo outras dezenove. Agora ele já deve ter constatado que a morte física, tão glorificada e ansiosamente buscada, não significou o fim do seu ser, nem cobriu os seus crimes com o véu da impunidade, isentando-o de prestar contas por suas atrocidades. Como nenhuma violação à Lei do Espírito de Vida é tolerada, ele será obrigado a voltar à arena terrestre para saldar a sua dívida de sangue, através da reparação das ofensas a que deu causa. Felizmente a misericórdia divina lhe permite ter nova oportunidade, na carne, de valorizar a existência à qual ele demonstrou desprezo, e, superando suas tendências homicidas, disseminar o bem no mesmo caminho que antes escolhera juncar de cadáveres.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Confesso que me vi

Um dia, ao me defrontar com o ideal de Pascal, não tive dúvidas de que finalmente encontrara a minha aspiração: eliminar do meu coração todo interesse mundano, propondo-me a viver tão-só para Deus, e não trabalhar em outra coisa senão em agradar-Lhe. Quero que o meu propósito de ser útil não me permita fazer menos do que ajudar as pessoas e salvar vidas. Em verdade, posso ter uma posição eqüidistante frente aos problemas do mundo e não me afligir jamais, posso renunciar a tudo e mortificar o corpo com flagelos, jejuns e penitências, ou então servir à humanidade de um modo como nenhum outro jamais o faria, mas, se não tiver amor, serei apenas um imenso vazio, e não terei como conhecer a Deus, que É amor. Diante de mim está a meta, e eu, um servo inútil que nunca foi além do que lhe cabia fazer, não quero mais recalcitrar contra o aguilhão.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Tô fora

Foi somente após um longo período de triste sujeição ao domínio da bebida que consegui retomar do seu jugo as rédeas da minha vida. Beber sempre funcionou para mim como uma bóia de segurança, à qual me agarrava com afinco, para ganhar desembaraço e parecer mais interessante do que eu não acreditava que fosse. Um copo na mão era uma muleta social que me permitia circular sobranceiro por um ambiente, me conferia desenvoltura na conversação e fazia-me parecer ocupado com alguma coisa. Todo o tempo em que estive refém da garrafa impediu-me de enxergar um propósito construtivo para a minha vida, obstruiu minha iniciativa e criatividade e manteve-me estagnado à margem do progresso. Conselhos e rogos nunca faltam para nos desviar do rumo equivocado, mas ao impetuoso e insensato que se faz surdo à voz da razão, cabe-lhe aprender trilhando a própria via dolorosa. Magoei e decepcionei muitas pessoas, em especial aquelas a quem mais amava, mas espero que o meu tardio pedido de perdão me reconcilie com o seu amor.

A estrela sobe

Antes de renascer, minha tia Suely optou pelo espinho na carne. Pregada à cruz do câncer purificador, em 02 de março de 2002 a sua alma peregrina libertou-se de mais um cativeiro terrestre. Algumas semanas antes, eu a visitara pela última vez no hospital. A despeito do corpo enfermo, eu a vi como que envolta numa aura de serena conformação, de pacífica resignação ao seu inexorável destino. A sua figura tão delicada, estendida no leito, entre os cobertores, debilitada pelo assédio da moléstia, parecia-me como uma avezinha que, após sofrer um duro baque, dá vontade da gente agasalhar amorosamente e cuidar com desvelo. Cumprimentei-a, toquei-a, e eu não pude sentir em mim nada mais além da profunda beleza que a sua essência infundia. E tudo o que eu soube dizer-lhe da verdade daquele instante, e com a firmeza do meu coração, foi isto: que ela estava tão bonita! Ela chorou. E durante o resto do tempo em que estive ali, até me despedir, fiquei apenas a olhá-la. Não soube dizer-lhe mais nada. Não havia nada mais a dizer.