terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Espólio de guerra

Nesta terça-feira estava assistindo ao Profissão Repórter, da Rede Globo, sobre o drama das enchentes em Santa Catarina. Nosso planeta era um corpo dócil e livre que queria apenas conviver em harmonia com os outros seres. A humanidade, entretanto, impôs-lhe tantos desatinos que o transformou num ressentido ansioso por revidar os maus-tratos, tal como o potro selvagem que opõe redobrado vigor ao domador insensato. Hoje a natureza age como se estivesse querendo empurrar os bárbaros invasores – nós - para além de suas fronteiras. Durante o programa me peguei refletindo que, apesar da magnitude do desastre, não havia saques. Pois logo em seguida foram mostradas cenas em que um supermercado inteiro havia sido pilhado. O cenário era deprimente, desolador: em meio à lama, à sujeira e aos destroços boiando, as pessoas carregavam o que podiam, às vezes além das suas forças, e algumas alegavam que pegavam todas aquelas coisas porque a ação fora autorizada pelo dono. Pode ser, mas eu duvido. Vejam quão tênues são os liames que mantém coeso o tecido social, e quão assustadores são os efeitos do seu rompimento...

Apenas os diamantes são eternos

As grandes montadoras de automóveis norte-americanas deram um ultimato ao governo federal, ameaçando escoar pelo ralo, e com elas quase todo o país, caso não sejam aquinhoadas com uma ajudazinha de alguns bilhõezinhos de dólares. Então me lembrei dos dinossauros que, em priscas eras, e em razão da sua pujante envergadura, também chegaram a dominar o mundo. Busca-se uma causa para o desaparecimento dos paquidermes pré-históricos, mas é certo que eles não tinham discernimento suficiente para ruminar sobre a transitoriedade das coisas, e tampouco a quem apelar para salvar a própria pele. Os mamutes ianques, que não fizeram uso do primeiro atributo, poderão ser bem-sucedidos em dispor do segundo? Esse pessoal é daquele tipo que, quando está no bem-bom, fica entoando loas à sacralidade do tal livre mercado, e demonizando a interferência do Estado na economia, mas, quando o bicho começa a pegar, não tem o mínimo pudor em intimar o dragão da maldade do poder público a arcar com a conta da sua irresponsabilidade. Façam suas apostas: o Tio Sam cederá à chantagem, ou então dará um cotoco para eles?

Quem tem olhos, que trema

Tempos estranhos, estes em que vivemos. Tempos em que passamos, olhamos e seguimos em frente, indiferentes ao mais novo nicho de mercado admitido pela inércia e omissão da autoridade. O retângulo de papelão, ostensivamente pendurado, alardeia, para a cidade e o mundo, a atividade mais emblemática da diminuta banca de camelô: Temos óculos de grau. Simples assim, e em letras robustas, caprichosamente trabalhadas à mão. Incrédulo, procuro o mostruário, e lá estão, simetricamente expostos em meio a sombrinhas, guarda-chuvas, cuecas e calcinhas, os propalados objetos de correção ótica. Mas, covarde ao extremo, não fui ousado o bastante para arrancar, do facultativo-ambulante, o método científico usado para determinar qual o par de óculos que supriria a deficiência visual do incauto cliente. Arrisco que seja o empírico “vai experimentando até que um dê”. Tempos estranhos estes, em que, mesmo que o agourento papelão passasse a estampar Temos células-tronco, duvido que alguém ainda tivesse a capacidade de se escandalizar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Nenhum homem é uma ilha...

Há muitos anos o sr. Benedito Coelho de Oliveira sofria os tormentos de uma enfermidade cruel que o condenara tanto a ser tratado com desdém, menosprezo e asco - deduzidas as raras exceções – como também a testemunhar, ainda em vida, a decomposição do próprio corpo, e a vê-lo corroído e infestado por vermes. A úlcera aberta no peito, tão devastadora que fazia desviar o olhar mais obstinado, permitia entrever o pulsar do coração. Eu pretendia visitá-lo, mas nunca fui além da promessa. Acho que, inconscientemente, temia ver o que iria encontrar. Foi somente após saber que a alma do sr. Benedito libertara-se do grilhão da carne que eu privei-me da minha indiferença e fui até onde os seus restos descansavam, pois eu lhe devia uma visita. Então, à frente do seu túmulo despojado de qualquer aparato ou inscrição, pedi-lhe perdão por haver permitido que a minha vergonhosa repugnância, mascarada de reticente sensibilidade, me houvesse impedido de partilhar da grandeza da sua miséria. Em seguida, numa singela reverência, curvei-me perante o espírito deste valente que, sobrepondo-se aos estigmas do desprezo, do preconceito e da dor, soubera elevar-se à excelsa presença da majestade do Cristo.

Uma razão para viver

Há dez anos de cama, padecendo de uma distrofia muscular progressiva, Inmaculada Echevarría, uma enfermeira espanhola de 51 anos, pediu e obteve, com o apoio da Associação Direito de Morrer Dignamente, autorização judicial para que o respirador mecânico que a mantinha viva fosse desligado. Ela faleceu na noite de 14 de março de 2007, em Granada. É cômodo e bonito falar em perseverança e constância quando não estamos confrontados com a dor, o imobilismo e a carência, e é somente o acatamento a esta verdade que me permite louvá-la por sua firmeza de ter ido até onde, provavelmente, muitos de nós não conseguiríamos chegar. Além do mais, a trilha dos seus sofridos anos percorridos é a prova mais cabal a oferecer de que não se pode dizer que ela não tenha feito o que pôde, que não tenha tentado, e que nenhum de nós é insuspeito de dizer que poderia ter feito mais, e melhor. Tudo bem. Mas, que falta não faz, nessas horas, uma Associação Direito de Viver Dignamente, para nos ajudar a manter-nos vinculados à Fonte perene de Amor, Sabedoria e Poder, nela confiar e saber esperar...

Ir e regressar

Um canadense de 25 anos que se dizia enojado com a sociedade, e que apregoava o assassinato e a barbárie, foi morto em confronto com a polícia após disparar contra os alunos de uma escola em Montreal, matando uma pessoa e ferindo outras dezenove. Agora ele já deve ter constatado que a morte física, tão glorificada e ansiosamente buscada, não significou o fim do seu ser, nem cobriu os seus crimes com o véu da impunidade, isentando-o de prestar contas por suas atrocidades. Como nenhuma violação à Lei do Espírito de Vida é tolerada, ele será obrigado a voltar à arena terrestre para saldar a sua dívida de sangue, através da reparação das ofensas a que deu causa. Felizmente a misericórdia divina lhe permite ter nova oportunidade, na carne, de valorizar a existência à qual ele demonstrou desprezo, e, superando suas tendências homicidas, disseminar o bem no mesmo caminho que antes escolhera juncar de cadáveres.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Confesso que me vi

Um dia, ao me defrontar com o ideal de Pascal, não tive dúvidas de que finalmente encontrara a minha aspiração: eliminar do meu coração todo interesse mundano, propondo-me a viver tão-só para Deus, e não trabalhar em outra coisa senão em agradar-Lhe. Quero que o meu propósito de ser útil não me permita fazer menos do que ajudar as pessoas e salvar vidas. Em verdade, posso ter uma posição eqüidistante frente aos problemas do mundo e não me afligir jamais, posso renunciar a tudo e mortificar o corpo com flagelos, jejuns e penitências, ou então servir à humanidade de um modo como nenhum outro jamais o faria, mas, se não tiver amor, serei apenas um imenso vazio, e não terei como conhecer a Deus, que É amor. Diante de mim está a meta, e eu, um servo inútil que nunca foi além do que lhe cabia fazer, não quero mais recalcitrar contra o aguilhão.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Tô fora

Foi somente após um longo período de triste sujeição ao domínio da bebida que consegui retomar do seu jugo as rédeas da minha vida. Beber sempre funcionou para mim como uma bóia de segurança, à qual me agarrava com afinco, para ganhar desembaraço e parecer mais interessante do que eu não acreditava que fosse. Um copo na mão era uma muleta social que me permitia circular sobranceiro por um ambiente, me conferia desenvoltura na conversação e fazia-me parecer ocupado com alguma coisa. Todo o tempo em que estive refém da garrafa impediu-me de enxergar um propósito construtivo para a minha vida, obstruiu minha iniciativa e criatividade e manteve-me estagnado à margem do progresso. Conselhos e rogos nunca faltam para nos desviar do rumo equivocado, mas ao impetuoso e insensato que se faz surdo à voz da razão, cabe-lhe aprender trilhando a própria via dolorosa. Magoei e decepcionei muitas pessoas, em especial aquelas a quem mais amava, mas espero que o meu tardio pedido de perdão me reconcilie com o seu amor.

A estrela sobe

Antes de renascer, minha tia Suely optou pelo espinho na carne. Pregada à cruz do câncer purificador, em 02 de março de 2002 a sua alma peregrina libertou-se de mais um cativeiro terrestre. Algumas semanas antes, eu a visitara pela última vez no hospital. A despeito do corpo enfermo, eu a vi como que envolta numa aura de serena conformação, de pacífica resignação ao seu inexorável destino. A sua figura tão delicada, estendida no leito, entre os cobertores, debilitada pelo assédio da moléstia, parecia-me como uma avezinha que, após sofrer um duro baque, dá vontade da gente agasalhar amorosamente e cuidar com desvelo. Cumprimentei-a, toquei-a, e eu não pude sentir em mim nada mais além da profunda beleza que a sua essência infundia. E tudo o que eu soube dizer-lhe da verdade daquele instante, e com a firmeza do meu coração, foi isto: que ela estava tão bonita! Ela chorou. E durante o resto do tempo em que estive ali, até me despedir, fiquei apenas a olhá-la. Não soube dizer-lhe mais nada. Não havia nada mais a dizer.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Os sinos também dobram por nós

Houve um tempo em que éramos jovens, despreocupados e encarávamos tudo com galhofa e bom humor. As tragédias, estas pareciam ser sempre alheias, no máximo resvalavam em nós. No entanto, apesar de o nosso grupo de amigos permanecer praticamente todo na mesma cidade, com o tempo a nossa relação foi se esfriando, o convívio comum desapareceu, e passamos a nos encontrar apenas por acaso. Entre eu e o Paulão, por exemplo, não havia mais a receptividade e a espontaneidade de antes, tanto que, nas poucas vezes em que nos víamos, ficávamos quase que constrangidos um com o outro. Era incrível! Nós, que já passáramos por tanta coisa juntos, agora não passávamos de estranhos. Pois por estes dias a desgraça, que sempre posara de ser nossa cúmplice, resolveu ser madrasta, e abateu-se inapelavelmente sobre o Paulão, ceifando a vida do seu único filho. Fui até a sua casa levar-lhe os pêsames, e quando me viu ele começou a chorar. Abracei-o por uns instantes, calado, e mudo permaneci enquanto fiquei sentado ao seu lado, porque eu sou especialista em não saber o que dizer nessas situações. Para o meu consolo, a Riso, da qual já foram arrebatados alguns entes queridos mais próximos, diz que nessas horas o melhor é não dizer nada mesmo, pois o que quer que se diga é inútil. Até pode ser, mas sei que deveria ter-lhe dito, junto com o lamento pelo óbito do filho, também o quanto lastimava o desfalecimento da nossa amizade.